O post de hoje em clima de carnaval no Traduzindo a Dublagem traz uma questão extremamente importante que levei um certo tempo para aprimorar na minha prática. Trata-se do que vou chamar aqui de entendimento cênico algo que, quando o tradutor consegue dominar, automaticamente faz com que ele obtenha excelentes resultados em suas traduções. Vamos conversar mais sobre isso? Vem comigo! 😉

Sempre digo que para o tradutor conseguir produzir um texto bom, gostoso e verdadeiro de ler, não basta se ater exclusivamente às palavras ditas pelos personagens. É preciso que esse profissional seja cada um dos agentes em cena, é preciso estar lá e vivenciar a cena que está se descortinando diante dele.

Sei que pode parecer um pouco de exagero, mas garanto que não é. Tal qual os dubladores, se os tradutores para dublagem se permitirem entrar na pele dos personagens, o resultado da tradução e, principalmente do produto ao final de todo o processo de dublagem, tem tudo para ser o melhor possível. Obviamente que ocorrerão mudanças no estúdio, mas acredito que com uma boa tradução, o texto já estará o mais mastigado possível para o diretor e os dubladores marcarem gol no momento das gravações.

Bom, mas vamos lá: o que é o tal do entendimento cênico ao qual me referi no comecinho do post e o que ele tem a ver com a parte da tradução em si? Posso falar por experiência própria e até mesmo pela correção de exercícios que já fiz de alunos em cursos e workshops que compreender a cena em sua totalidade é algo que leva tempo para se dominar.

E por quê? Em geral, os iniciantes na tradução para dublagem se apegam muito ao original e apenas às palavras ditas sem reparar na composição total da cena, ou seja, na intenção que ela deseja passar ao telespectador e na intenção escondida por trás de cada fala. Nos prazos, muitas vezes, insanos que temos para traduzir, existem certas nuances e certos aspectos em algumas falas que não pegamos de primeira, então analisar e fazer uma revisão cuidadosa (se possível até duas) é fundamental para conseguirmos extrair o máximo possível do que foi dito e fazer com que transpareça no texto traduzido.

Vamos tentar deixar essa questão um pouco mais palpável? Relembre comigo um dos momentos mais assustadores da animação clássica da Disney, A Bela e a Fera, o momento em que a personagem Bela vai até a ala oeste, mesmo sabendo que era proibido ir até lá.

Bom, se você, assim como eu, sentiu arrepios no segundo berro da Fera, você não está sozinho (palmas para o nosso eterno Garcia Júnior!), pois é justamente sobre essa fala que eu gostaria de comentar. No original em inglês, a Fera grita “Get out!” duas vezes, sendo que na primeira a tradução foi “Saia!” e na segunda, a tradução foi “Vai embora!” É sobre essa segunda que quero comentar.

Não temos como saber se o “Vai embora!” já veio da tradução ou foi uma mudança de estúdio, mas o fato é que, apesar de ser uma tradução longa se consideramos que em inglês temos duas palavras monossílabas, o truque é que o “out” é dito na parte em que Bela já está correndo do lado de fora, ou seja, a boca da Fera não aparece. Sendo assim, o “embora” fica excelente dentro do contexto e da intenção da cena, que é causar medo no telespectador, assim como a Fera causou em Bela.

Tentando agora ser o mais suscinto possível, o que eu quero dizer é que quando o tradutor consegue analisar tudo que se passa diante dele e domina a cena, ele vai saber como usá-la a seu favor, inclusive a boca dos personagens. Isso é o entendimento cênico, é saber como e quando usar a cena ao seu favor no momento da tradução.

Para fechar o post, vou deixar um exemplo que aconteceu comigo na tradução da 1ª temporada de um desenho chamado Niko and the sword of Light.

Ao longo da história, o personagem Niko sempre usa a mesma frase mágica “Darkness, be gone!” para purificar e expurgar a escuridão alojada dentro de seus inimigos. Foi uma das escolhas mais complicadas que tive de fazer, pois tinha que ser uma tradução que coubesse na boca do personagem, fizesse sentido com o efeito causado pelas palavras assim como no original e tivesse também a força e expressividade presente na voz do personagem ao pronunciar “Be gone!” Na época, me lembro que escrevi diversas possibilidades no papel até me decidir pela solução escolhida e que, pessoalmente, acredito ter dado conta de todas as exigências cênicas e labiais. O resultado você confere abaixo:

E aí? Gostou da dica e dos exemplos de hoje? Como sempre, não se esqueça de deixar o seu comentário pra continuarmos essa questão que dá muito pano pra manga. Um grande abraço e até o próximo post! 😉

Paulo Noriega

Sou autor do blog Traduzindo a Dublagem e tradutor atuante nas áreas de dublagem e editorial. Amo poder compartilhar meu conhecimento a respeito do universo da dublagem e da tradução para dublagem. Seja bem-vindo a este fascinante universo!

10 Comentários

Alessandra Dahya

3 de março de 2019

Gostei muito Paulo. Contribuições como essa acrescentam e muito na nossa responsabilidade com a tradução.

    Paulo Noriega

    6 de março de 2019

    Que bom que gostou, Alessandra! =) Obrigado pelas suas palavras.

    Paulo Noriega

    11 de julho de 2020

    =)))

Raul Rocha

4 de março de 2019

Olá!
Achei esse post maravilhoso.
O uso dos exemplos foi ótimo para entender na prática.
Me identifico muito com o tema, pois acho que com um pouco de exercício conseguiria criar esse entendimento cênico.
Ainda não sabia que você dava cursos e workshops, seria uma experiência incrível participar de um deles, principalmente com exercícios. hehe
É muito bom acompanhar seu trabalho de perto e entender melhor o funcionamento desse maravilhoso mundo da tradução para dublagem.
Gratidão pelo ótimo post e até o próximo.

    Paulo Noriega

    6 de março de 2019

    Oi, Raul! Obrigado de coração pelas suas palavras carinhosas. É esse tipo de gás que me faz seguir em frente. Gratidão a você. =)

Aimee

12 de novembro de 2019

Adorei seu texto. Estou fazendo um curso de tradução para dublagem e esse entendimento cênico parece ser sempre o centro de toda tradução, de que dublagem é imagem e a cena sempre prevalece em relação ao roteiro. Muito legal ver tudo bem explicadinho com os trechos pontuais para exemplificar 🙂
Abraços

    Paulo Noriega

    18 de fevereiro de 2020

    Que bom que gostou, Aimee!! =) Fico feliz, viu? Grande abraço!

    Paulo Noriega

    11 de julho de 2020

    Que bom que gostou, Aimee! Fico muito feliz! =)

Monica Carbonell

10 de julho de 2020

Muito boa a postagem. Pena que o seu exemplo não carregou.
Fiquei sem saber qual foi sua escolha para o “be gone!”
Estou tentando entrar nesse mundo da tradução para dublaegem. Então, todo conselho é bem-vindo.
Obrigada,

    Paulo Noriega

    11 de julho de 2020

    Oi, Mônica, legal te ter por aqui. O blog está com alguns bugs, mas corrigi e agora você pode conferir a solução do “be gone!” 😉 Beijo!

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