E a tal da oralidade voltou com toda força aqui no Traduzindo a Dublagem, mas, desta vez, pra ilustrar um caso clássico da nossa versão brasileira. Inspirado em um post anterior em que abordei um pouco essa questão da oralidade, o principal instrumento de trabalho do tradutor para dublagem, o que era uma monografia de mais de 40 páginas pra uma matéria ainda na época do meu bacharelado, se transformou no post desta sexta-feira. Pode ler sem medo, pois o post está bem leve!

Aviso aos navegantes: caso você nunca tenha assistido a essa obra-prima dos estúdios Disney, aconselho que veja com urgência antes de continuar a leitura do post para se contextualizar melhor. 😉

Vamos começar? Lááá em 2013, o foco do meu trabalho foi fazer a análise da redublagem do clássico e atemporal Branca de Neve e os sete anões, realizada na década de 1960, que contou com a direção de dublagem de Telmo Perle Münch. Interpretando a famosa princesa nos diálogos, estava a dubladora Maria Alice Barreto e Cybele Freire nas canções. A escolha desse longa para análise não foi ao acaso, pois ele não só foi um importante marco na indústria cinematográfica, como também teve um papel histórico na dublagem brasileira.

Caso queira saber um pouco mais sobre os dados dessa redublagem, clique aqui, pois fiz um post inteiramente dedicado a falar sobre redublagens, e esse longa é um ótimo exemplo para ilustrar esses casos. Só para você ter uma ideia, tanto o DVD quanto o Bluray lançados em 2009 ainda contam com essa redublagem.

O Dvd e o Bluray lançados em 2009 ainda contam com a dublagem de 1964
O DVD e o Bluray lançados em 2009 ainda contam com a redublagem de 1964

Essa obra dos estúdios Disney exemplifica muito bem as questões exploradas por mim no post anterior sobre oralidade aqui no blog, principalmente no que diz respeito a marcar os registros de fala dos personagens e como esses mesmos registros expressam as relações que eles têm entre si.

Mas por que digo isso? É porque minha análise foi feita com base nos níveis interacionais, ou seja, na forma como os personagens se relacionam. Como você já vai perceber, foi nítido reparar como a linguagem e os registros utilizados estão diretamente ligados às suas respectivas classes sociais. Por fim, caso você já tenha visto o filme e saiba as falas de cor como eu, prepare-se, pois vamos revivê-lo juntos sob uma nova perspectiva! Pronto? Vamos lá!

Interações:

1) A Rainha Má com o Espelho Mágico

Sendo uma das relações mais interessantes do longa, os diálogos da Rainha com seu espelho mágico são emblemáticos, contudo breves, já que ambos interagem somente em duas cenas: uma no começo e outra na reta final do filme.

Na versão original americana, tanto a fala da rainha quanto a do encantado objeto são muito bem marcadas, pois enquanto o espelho usa um registro antigo para se referir a rainha como na pergunta “What wouldst thou knows, my queen?”(“O que ordenais, minha rainha?”, na dublagem brasileira), a rainha também se utiliza do mesmo registro em sua fala, através de “thee” e “thy”, pronomes arcaicos da língua inglesa.

Na dublagem em português, é possível perceber que houve a tentativa de também marcar tais registros. No nosso caso, a rainha fala na segunda pessoa do singular (“tu”), o que pode ser evidenciado pelo uso do imperativo afirmativo e pelo uso do pronome “tua”. Já o espelho se dirige à rainha na segunda pessoa do plural (“vós”), ilustrado também pelo pronome “vossa”, tal como na afirmação “Famosa é a vossa beleza, Majestade”.

Outra característica importante do objeto encantado é que, no original, praticamente todas as suas falas são rimadas. Visando manter essa marca na nossa dublagem, em ambas as cenas em que ocorre essa interação entre a rainha e o espelho, as rimas foram preservadas.

A rainha má e o espelho mágico
A Rainha Má e o Espelho Mágico

2) A Rainha Má com o caçador

Mesmo ocorrendo em uma única cena, a questão da oralidade se faz presente na interação da rainha com seu subalterno. Para quem não se recorda, logo após a cena de abertura em que a rainha vê o príncipe encantado cantar para Branca de Neve, ela ordena que um de seus servos, o caçador, leve a princesa para colher flores, como pretexto para executá-la e trazer o coração dela em uma caixa.

Em termos de registro, é interessante perceber como a rainha não o trata da mesma maneira que trata seu espelho, ou seja, aqui ela não se utiliza de uma linguagem mais formal e pomposa para se dirigir ao caçador. Uma possível explicação é exatamente o fato de ele ser um caçador, portanto, uma figura inferior em termos sociais, diferentemente do espelho, um objeto místico e que merece respeito. Tal diferença de registro pode ser evidenciada pelo o uso do pronome “you” (“você”) por parte da rainha para se referir ao caçador no original em inglês.

Já em português, ela continua usando a segunda pessoa do singular, tal qual com o Espelho Mágico, não havendo a mesma diferenciação que há em inglês. A fala do caçador, por sua vez, não possui nenhuma característica marcante, até porque esse personagem tem pouquíssimas falas durante o filme. Entretanto, é nítida a noção de hierarquia que ele possui para com a rainha, chamando-a de “Your Majesty” (“Majestade”), por exemplo.

A rainha e o caçador
A rainha e o caçador
3) Branca de Neve e a rainha transformada em mendiga

O único momento em que a protagonista interage com a antagonista do filme é apenas no final, quando a rainha aparece transformada em mendiga para envenenar a princesa com sua maçã. Analisando principalmente as falas da rainha, é interessante perceber que, nesse momento em inglês, a rainha se refere à Branca de Neve na terceira pessoa do singular (“you”), mesmo com o pronome omitido, ou seja, ela se dirige à sua inimiga da mesma maneira com que se dirige ao caçador.

Entretanto, a situação e o contexto são outros. Neste momento da história, a rainha está disfarçada de mendiga, ou seja, está sob o disfarce de alguém de classe inferior. Desse modo, seria estranho e inadequado para ela usar o mesmo inglês rebuscado que utiliza para se referir ao Espelho Mágico, não é verdade? A princesa, por sua vez, também não faz uso de uma fala rebuscada para se dirigir a uma pobre senhora, tratando-a como uma igual.

Na nossa versão brasileira, o que chama mais atenção nessa interação é, novamente, a rainha. Diferentemente do que foi visto até então, essa personagem usou a segunda pessoa do singular para falar com o espelho e com o caçador. Somente com Branca de Neve é que vemos, pela primeira vez, essa personagem usar o pronome “você”, tal qual no original.

Essa mudança realizada em sua fala também pode ser explicada pelo mesmo motivo anterior. Ela agora é uma velha mendiga, então vamos combinar que não justificaria o uso pomposo da segunda pessoa, como ela usava em sua identidade real de rainha, né?

Branca de Neve e a rainha disfarçada
Branca de Neve e a rainha disfarçada

4) Branca de Neve e os sete anões

Ahhh, como esquecer da amizade entre os sete anões e Branca de Neve, né? A interação da protagonista com eles permeia boa parte do longa, e é interessante perceber que, mesmo sendo da realeza, a fala de Branca de Neve não é tão marcada quanto a da rainha. A princesa se refere aos anões sempre na terceira pessoa do singular (“you”), talvez por pertencerem a uma classe operária ou talvez (o que acho mais provável) por conta do grau de amizade e intimidade que vão adquirindo no decorrer da narrativa, tratando-os assim como iguais. Ah, e esse uso da terceira pessoa também se reflete na nossa dublagem, viu?

Em contrapartida, as falas dos sete anões são marcadas por um registro bem informal e subpadrão na versão original do filme, algo que me deixou muito surpreso quando vi o longa no original pela primeira vez. No entanto, essa marca característica não foi mantida na dublagem brasileira (e não cabe muito aqui ficarmos nos perguntando o motivo para isso).

Agora, essa preocupação em dar a eles um registro característico em inglês pode ter sido por serem representantes de uma classe trabalhadora braçal, e esse recurso de marcar falas subpadrão em inglês é visto com uma naturalidade e aceitação muito maior por lá do que por aqui no Brasil, até mesmo na literatura. Mas voltando para nossa dublagem, diferentemente do que foi visto nos casos da rainha e do espelho, por exemplo, em que houve uma preocupação de marcar os registros de ambos, o mesmo não ocorreu com os anões.

Para ilustrar um pouco, em inglês, há algumas falas como a do anão Zangado, em que diz “All females is poison!”, e em português seguiu-se a norma culta, “As mullheres são falsas!”. Outro exemplo é a do anão Feliz, que fala”He don’t know”, em vez de “He doesn’t know” para se referir ao fato de Dunga ser mudo e não conseguir falar.

Além dessa marca no original, tanto em inglês quanto em português, eles não mudam seu jeito de se dirigir à Branca de Neve, mesmo sabendo de sua linhagem nobre. Tal fato mostra uma ausência de noção de hierarquia por parte dos anões, mas, novamente, isso pode ter sido um reflexo de tentar mostrar o grau de amizade e cumplicidade adquirido no decorrer da história.

Branca de Neve e os anões
Branca de Neve e os anões

5 ) A interação entre os sete anões

Por último, mas não menos importante, há momentos em que os anões interagem apenas entre si. De modo geral, tirando o registro subpadrão utilizado por eles em inglês, não há nada extraordinariamente diferente na interação entre os sete anões, que se tratam como iguais. No entanto, apenas dois anões apresentam uma certa peculiaridade que vale a pena mencionar: o anão Dunga, que é mudo, e outro que abordo logo abaixo: o anão Mestre.

5.1) As falas de Mestre

O líder dos sete anões merece uma menção especial, pois além do registro subpadrão compartilhado pelos outros anões no original, ele possui uma peculiaridade não presente nos demais: uma disfunção na fala, embora seja algo não explicado no filme. Para você que assistiu ao longa, lembra como ele costumava se embolar um pouco quando falava? Pois é, essa pequena disfunção o faz trocar as palavras, conferindo a ele uma característica voltada para a comicidade.

O mais bacana é que essa marca foi mantida na dublagem brasileira. No original, é comum ele dizer palavras semelhantes em inglês, mas essa troca pode ser de outra natureza, como uma inversão de sujeito e verbo, como na fala abaixo:

[Versão original]

Doc: The lit’s light… the light’s lit.

[Versão dublada]

Mestre: Nossa casa… azeda, não, não… acesa!

Agora outro exemplo:

[Versão original]

Doc: We’ll squeak upsneak up.

[Versão dublada]

Mestre: Vamos espirrar… não, espiar.

Nessa segunda fala, reparem que a natureza do equívoco cometido pelo anão é mantida. Em ambas as versões, Mestre confunde o verbo que queria usar e, além disso, os verbos confundidos rimam. O verbo “squeak up” rima com “sneak up” e, na dublagem, “espirrar” rima com “espiar”. Muito legal, né?

O anão Mestre
O anão Mestre

E aí? Gostou de saber mais um pouco mais sobre a dublagem de um dos principais clássicos da Disney e que também foi um marco para a história da nossa versão brasileira? Já havia visto Branca de Neve e os sete anões no áudio original? Deixe o seu comentário aqui embaixo para conversarmos, um grande abraço e até o próximo post! 😉

Paulo Noriega

Sou autor do blog Traduzindo a Dublagem e tradutor atuante nas áreas de dublagem e editorial. Amo poder compartilhar meu conhecimento a respeito do universo da dublagem e da tradução para dublagem. Seja bem-vindo a este fascinante universo!

8 Comentários

Joyce

10 de fevereiro de 2017

Agora vou ter que assistir ao filme, Paulo!
Delícia de post!
Você bem que poderia disponibilizar o seu trabalho… ??

    pfcnoriega

    11 de fevereiro de 2017

    Assiste sim, Joyce! É muito lindo e é um clássico. Que bom que gostou do post =) Quanto ao trabalho, eu só tenho versão impressa mesmo porque foi pra uma matéria só, mas tudo o que era relevante está no post. =)

Ligia Ribeiro

13 de fevereiro de 2017

Excelente artigo! Não só pelo fato de nos contemplar com um belíssimo clássico de Walt Disney, mas por esmiuçar, no sentido positivo da palavra, as nuances das falas e da tradução feita posteriormente. A colocação da linguagem correta referente a uma respectiva época em uma tradução, por exemplo, é importantíssimo. Dá mais veracidade á história. Outro dia assisti a um episódio de uma série em que um senhor, já passando dos seus 50 anos, utilizava muitas gírias atuais em suas pouquíssimas falas. Claro que pode ser possível que isso aconteça, mas soou fora do contexto. Então, vejo que na tentativa de redublagem, às vezes, perde-se muito da ambientalização correta em prol de uma tentativa de adequação à linguagem cotidiana, cheia de expressões e gírias que poderiam ser evitadas ou amenizadas. Parabéns, Paulo.

    pfcnoriega

    14 de fevereiro de 2017

    =)))

Guga Almeida

1 de março de 2017

Muito legal !!! adorei. O trabalho quando é bem feito, é uma delícia de se assistir, tanto que esses detalhes pra quem está “só” se divertindo, são imperceptíveis e inimagináveis. Ótimo trabalho, o seu também.

    pfcnoriega

    1 de março de 2017

    =) Valeu, querido. Os bons tradutores têm uma participação crucial nesses detalhes e o conhecimento linguístico é sempre importante, algo que o Telmo, tradutor desse filme, tinha sem sombra de dúvida. Por mais tradutores capacitados e conscientes como ele.

Sumara Louise

12 de maio de 2017

Telmo de Avelar…um ator / tradutor…um tradutor/ ator….qual melhor ? Quem com ele aprendeu , como eu , não conseguiu saber…era excepcional em ambos…mas , na tradução, a busca da labial , a letra da canção, o conhecimento profundo do idioma , consagraram Telmo. ..Sua Excelência absoluta , Telmo de Avelar….saudade Mestre! !!

    Paulo Noriega

    13 de maio de 2017

    Sumara Louise, que prazer ver uma veterana da nossa versão brasileira aqui no meu blog! Fico muito feliz pelo seu comentário e que tenha gostado do post. Foi muito gostoso poder contemplar essa obra dublada maravilhosamente traduzida e dirigida pelo nosso saudoso Telmo que, infelizmente, já nos deixou. Um grande beijo pra você! =)

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