Mais um mês e mais uma entrevista exclusiva aqui no blog! Desta vez, trago um convidado mais do que especial, porque ele é um grande amigo e parceiro no mundo da dublagem: Dudu Fevereiro! A gente se conheceu no ano passado e, desde então, trocamos muitas ideias e experiências: eu como tradutor, e ele como dublador e diretor de dublagem. Ficou curioso? Então chega mais!

Tive o prazer de receber o Dudu aqui na minha casa para entrevistá-lo e nos focamos na experiência dele como dublador e diretor de dublagem. Além disso, conversamos sobre a relação tradutor-diretor, e ele aproveitou para dar algumas dicas aos aspirantes a tradutores desse nosso amado segmento. Sem mais delongas, fique com a entrevista abaixo, deixe seu comentário e até o próximo post. 😉

Dudu Fevereiro
Dudu Fevereiro

Paulo Noriega: “Dudu, como foi sua inserção no mundo da dublagem e quais foram os personagens mais memoráveis que você já fez?”

Dudu Fevereiro: “Comecei menino… minha mãe via que eu adorava cantar e imitar os personagens na TV (ri), e aí me colocou em cursos de teatro, de dublagem e TV. Fiz o (curso) de dublagem na antiga TV Tupi, na Urca, em 96 com o Eduardo Dascar e eu tinha de 10 pra 11 anos de idade. Nesse curso, o Dascar me viu cantar e, após terminar o curso, ele começou a me indicar pra alguns estúdios para fazer testes. Passei em alguns na Herbert Richers, VTI, TVE, Doublesound, Delart… aí comecei a gravar canções de alguns desenhos que saíram na época.

O primeiro personagem que eu fiz em dublagem foi o Bronson Twist, o protagonista de uma série chamada Família Twist que passava na TVE, e ele também cantava. Por muitos anos, fui a voz do Cristóvão, o menininho do Ursinho Pooh, nos diálogos e nas canções. Também gravei canções de alguns personagens como o David de Todos os cães merecem o céu 2, Wakko de Animaniacs, o Littlefoot de Em busca do Vale Encantado, Milhouse de Os Simpsons, o Gato Félix do desenho O Gato Félix… desses foram apenas canções.

Dublei o Haley Joel Osment, o menino do Sexto Sentido, num filme chamado O pequeno chefe vermelho e o menino Alex Rafalowicz no filme Shine  Brilhante. Durante alguns anos, dublei a cobra Kaa dos Filhotes da Selva (desenho com os animais da série Mogli da Disney ainda filhotes) e também sou a voz do lêmure Horst de Saúdem todos o Rei Julien, do Jacques em Total DramaCorrida Alucinante, do Sebastian de Bojack Horseman, do Ratzo da série Garfield e do Jules, um dos protagonistas da série Transporter, e estou aguardando ansiosamente (ri) a estreia do nosso desenho Essa não! É uma invasão alienígena!, em que eu tive o prazer de dar a voz ao antagonista Céfalo. Com certeza, foi um personagem que me marcou bastante e foi divertidíssimo de interpretar! Nos games, também dublei diversos personagens, mas os que mais me marcaram foram o Variks de Destiny, o pirata Julien du Casse de Assassin’s Creed IV: Black Flago Tank Dempsey de Call of Duty e o Hurk de Far Cry 4.”

Paulo Noriega: “Como costuma ser o caminho de transição de dublador pra diretor de dublagem?”

Dudu Fevereiro: “Eu penso que se você quer ser um dublador, você precisa ser um ator, certo? Se você quer ser um diretor de qualquer vertente ligada à interpretação, você precisa ter alguma experiência como diretor ou um registro profissional de diretor. Isso qualifica muito o nosso produto final. Eu entendo que se a principal base do trabalho do dublador é a interpretação – afinal, somos atores – o profissional que vai dirigir uma produção de dublagem precisa ter o conhecimento necessário para dirigir um ator, correto?

No ofício da dublagem, existem alguns pré-requisitos que eu até julgo necessários, mas que não são suficientes para realizar a função de direção. Se não me engano, você tem que ter feito pelo menos 5 protagonistas e ter 10 anos de dublagem, algo do tipo. São pré-requisitos que, com certeza, têm seu valor e não questiono isso. Afinal, a experiência através da prática ajuda muito a ter domínio sobre o processo.

No entanto, não significa que um ator que dublou 90 protagonistas, necessariamente, irá executar bem a função de direção. Não julgo a direção como um posto ou como se o dublador fosse “promovido” a diretor. Não vejo dessa forma. É uma função como qualquer outra e tão importante quanto, mas que exige alguns atributos diferentes dos atributos do ator (dublador). De verdade, não questiono a qualidade de nenhum diretor da atualidade e acho que quem está ali está por mérito e tem muito valor a agregar. Só acho que os diretores de dublagem deveriam querer se regularizar no sentido de tirar o seu registro profissional de direção, e o mercado passar a exigir isso. Isso qualifica nosso produto final e a qualidade dos nossos profissionais. A profissão só tem a ganhar com isso.

Quando eu era criança e comecei a fazer meus primeiros trabalhos, perguntei no sindicato e no Ministério do Trabalho, o que eu deveria fazer pra virar ator e diretor. Disseram pra eu estudar teatro, fazer uma faculdade e continuar trabalhando como ator e diretor em todas as vertentes possíveis. Eu sempre guardei os comprovantes de todos os trabalhos que fiz. Juntei tudo e voltei lá com 18 anos, como pediram. Não existe a profissão de “dublador”, e sim a de “ator”. Segui esse pensamento à risca e comecei a fazer cursos, workshops, peças e qualquer coisa ligada à interpretação até que atuar se tornou a paixão da minha vida. Cursei faculdade de Artes Cênicas e tive algumas brigas na minha família por conta disso (ri). Mas tudo o que eu queria era viver pro teatro e pra qualquer outro veículo que me fizesse interpretar.

Tive idas e vindas na dublagem por conta da faculdade e do teatro, mas em 2009, me formei e fui voltando pra dublagem aos poucos e alguns estúdios voltaram a me escalar novamente. Dessa forma, me reinseri no mercado com outra ótica, outra base de interpretação que foi muito importante pro trabalho de dublagem.

O diretor precisa não só estar atento às questões da interpretação, como também às questões ligadas a adaptação textual e à parte técnica. Outro ponto crucial e que ajuda bastante é o diretor ter conhecimento fluente do inglês ou do idioma estrangeiro do produto em questão, inclusive para poder fazer uma boa adaptação no momento da gravação sem perder o contexto da cena. Esse contexto pro diretor é fundamental, ele tem que estar inteirado completamente daquela história.

Às vezes, eu assisto a produção três vezes antes de gravar – uma pra entender a história, a outra acompanho com o script e já corrijo possíveis erros de adaptação na tradução e na terceira, escalo as vozes. Quando as gravações acabam, muitas vezes eu acompanho a edição, quando possível. Gosto de tentar deixar tudo perfeito. São muitas questões que devemos cuidar e cabe ao diretor prestar atenção a tudo pra entregar o projeto com o menor número possível de erros, de preferência sem erro algum. Tem que ter carinho, né? É o nosso trabalho e acho que um carinho com nosso trabalho é o mesmo que ter o carinho com o público que vai assistir e quer ver um produto de qualidade.”

Paulo Noriega: “Há quantos anos você atua como diretor de dublagem e qual foi a produção mais desafiadora que você dirigiu até hoje?”

Dudu Fevereiro: “Como diretor de dublagem, comecei em 2014 e dirigi cerca de 20 produções até agora. Acho que a produção mais desafiadora que dirigi até hoje foi a série Bojack Horseman que passa no NetflixFoi uma produção difícil por vários motivos. A primeira dificuldade foi o fato de todos os personagens terem diversas falas enormes e aceleradas, o estilo de comédia do desenho é esse. Por conta disso, muitas vezes ocorria de o texto traduzido estar muito maior ou muito menor do que o original, o que dificulta o trabalho do tradutor, obriga o diretor a fazer adaptações sem mudar o contexto, faz com que o ator tenha um maior trabalho regulando o ritmo – para encurtar ou alongar a fala – e resulta naturalmente num maior número de edições por parte do técnico, por conta da diferença de tamanho nas falas. Então julgo que esse tipo de série é mais trabalhoso para as quatro partes (ator, diretor, tradutor e técnico).

O segundo desafio foi o número de referências a celebridades estrangeiras – muitas delas desconhecidas aqui no Brasil – e o número de expressões idiomáticas que não faziam sentido se fossem traduzidas ao pé da letra. Eu fazia uma pesquisa rápida sobre uma personalidade e/ou expressão e, muitas vezes, trocava por uma personalidade brasileira, respeitando sua profissão (apresentador, professor, etc.) e adaptava as expressões para piadas “brasileiras” que fizessem o mesmo sentido ou a mesma referência.

O terceiro e principal motivo por BoJack Horseman ter sido uma série muito complicada se dá pelo fato de a série ter inúmeras pontas, cerca de 15 por episódio. Esse desenho tem um “Q” de Stanislavski total (ri) na questão da complexidade dos personagens, em que até mesmo os figurantes têm grande importância e rica personalidade.  Por exemplo: uma senhora professora que anda de bengala com casaco vermelho sempre aparece como “figurante”. Aí, em um determinado episódio, ela ganha um maior destaque e a história dela é contada em detalhes, mas seguindo os episódios, ela volta a ser uma “figurante” e aparece andando pela cidade novamente sem falas ou com poucas falas. Esse fato acontece não só com ela, como com outros personagens, há várias pontas no desenho. Pro diretor, isso é um quebra-cabeça tremendo pra resolver (ri). Mesmo com todas essas dificuldades, tenho a consciência tranquila de ter trabalhado nessa série com o máximo de carinho e cuidado que pude. Deu trabalho (ri), mas foi incrível.”

Bojack Horseman: produção marcante para Dudu Fevereiro

Paulo Noriega: “Dudu, você como diretor já deve ter lidado com traduções de todo tipo em vários estúdios. Você acha que acabou lidando mais com traduções ruins do que boas? Você sente alguma oscilação na qualidade das traduções?”

Dudu Fevereiro: “Não… olha, até acho erros de tradução, mas muitas vezes, é mais uma questão de adaptação mesmo. Às vezes, a pessoa traduz com um significado X, mas na verdade era o significado Y. Eu nunca cheguei a pegar uma tradução horrível, sabe? Já aconteceu de eu pedir os scripts originais pra eu conferir algumas coisas, mas nada muito desesperador (ri). Já vi erros de português, de digitação e de continuidade, mas nunca lidei com um caso que tivesse vários erros. É só ficar atento e não deixar passar. Quanto a oscilação, eu sinto sim (ri). Eu nunca peguei um trabalho muito ruim, mas é complicado, porque sempre precisa adaptar alguma coisa na hora da gravação. Mesmo quando o texto está muito bem traduzido, eu costumo adaptar de alguma forma, seja pelo sincronismo ou pelo contexto da cena.”

Paulo Noriega: “Dudu, do que você mais sente falta nos textos traduzidos e que dicas você daria para os futuros tradutores do ramo?”

Dudu Fevereiro: “Eu vejo que existem tradutores que traduzem muito ao “pé da letra” e não se inteiram muito sobre a história. Com isso, às vezes, eu pego erros bobos de adaptação, por exemplo. Erros de adequação de contexto, entende? Mas eu também pego sacadas bem criativas. Uma sugestão que eu gostaria de dar é o tradutor sempre ficar ligado no modo como ele sinaliza os personagens pra gente. O ideal é sempre deixar claro que personagem é aquele, com detalhes. Voltando ao exemplo da senhora professora de casaco vermelho do BoJack, às vezes, vinha escrito no script “senhora” e outras vezes “velha”. O melhor seria algo específico como “senhora de casaco vermelho”, principalmente se for uma série com muitas dobras. O tradutor e o diretor precisam ter atenção redobrada para identificar os mesmos personagens e evitar erros de continuidade.

Gosto de trabalhar com tradutores que entram mesmo no mundo da obra e ajudam o diretor a se organizar. Tudo o que puder facilitar a direção no momento das gravações é muito bem-vindo. É ótimo também quando o tradutor já adapta o tamanho da fala pro contexto da cena em si. Por fim, sugiro que os novos tradutores não tenham medo de ousar! Pra ilustrar, o tradutor da série Família Dinossauro adaptou o nome do protagonista para Dino da Silva Sauro e, se não fosse por ele, o nome seria Earl Sinclair, tal como é no original. Ele inseriu o “Da Silva”, um nome comum no Brasil no meio da palavra “dinossauro”. Se estamos fazendo a versão brasileira, temos que dar “a nossa cara” pro trabalho! É esse tipo de adaptação criativa e divertida que faz a nossa dublagem ser reconhecida como uma das melhores do mundo, e os bons tradutores têm grande participação nisso.”

Paulo Noriega: “Dudu, pra encerrar, por favor, eu gostaria que você falasse sobre os benefícios da parceria tradutor-diretor de dublagem.”

Dudu Fevereiro: “Eu gostaria que mais tradutores fizessem o que você faz com o diretor de dublagem, sabe? Procurar o diretor e discutir as principais questões das produções. A maior parte da decifração do texto é do tradutor e o diretor pode até ter o conhecimento da língua estrangeira, mas em alguns casos, não tem o domínio como o tradutor tem. O diretor vai verificar se o texto está enquadrado no sincronismo, se o ator está praticando a inflexão correta e se a adaptação do tradutor é pertinente ao contexto da cena, vai adaptar nomes, bordões, enfim… E o tradutor tendo o maior conhecimento da língua, pode dar mais opções para o diretor, de modo que os dois decidam qual é a melhor de acordo com a produção.

Uma boa relação com o diretor abre essa possibilidade dos dois escolherem as melhores opções e de serem mais criativos e ousados! Não tenham medo de ousar porque a criatividade dá um colorido pro trabalho. Óbvio que, no fim, tudo passa pela mão do diretor, mas se ele for a favor e for pertinente arriscar, eu não vejo problema nenhum! Os dubladores criam e os diretores também, então o tradutor pode criar quando for pertinente. Já vi muitos tradutores e diretores “salvarem” piadas que se perderiam se fossem traduzidas ao pé da letra. Essa parceria é bacana porque são duas funções diferentes que entendem de diferentes assuntos de igual relevância, e entrar em contato com o diretor e debater as principais questões sempre enriquece muito o trabalho.”

Eu e Dudu Fevereiro
Eu e Dudu Fevereiro

Paulo Noriega

Sou autor do blog Traduzindo a Dublagem e tradutor atuante nas áreas de dublagem e editorial. Amo poder compartilhar meu conhecimento a respeito do universo da dublagem e da tradução para dublagem. Seja bem-vindo a este fascinante universo!

2 Comentários

Ligia Ribeiro

28 de outubro de 2016

Parabéns Paulo, pelo excelente post e parabéns ao Dudu pela simpatia, pelo trabalho e por compartilhar sua experiência, assim como dicas e sugestões para os que estão se aventurando na tradução para dublagem.

Deixar comentário

Deixe um comentário